sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Ameaças de términos bruscos, incontroláveis e incompatíveis.

“O mundo vai se acabar num terreiro em João pessoa.” Um pai de santo me disse enquanto eu arrumava o material do despacho. De certa forma sentia aquilo acontecendo, a vibração de um término se anunciava nitidamente e chacoalhava meus ossos, de forma que a única alternativa cabível era acreditar. A meu lado esquerdo, uma moça esperava ser atendida, certamente procurava uma resposta, eu já tinha a minha. A meu lado direito, um pouco mais à frente, uma grande mesa de madeira lixada e sem pintura com coisas em cima. Havia um lápis sobre folhas brancas e algumas outras rabiscadas com nomes desconhecidos, uma rosa e um alguidá no canto, quase caindo. Levantei, ajeitei o alguidá e logo em seguida, voltei para minhas tarefas. Eu ainda arrumava as coisas do despacho e degustava a informação lentamente.

Tentava digerir e exercitar o desapego desde já, não conseguia. À medida que pensava nas coisas com meu desprendimento recém-adquirido, mais eu me apegava, mais eu sentia saudades. Meu esforço era inversamente proporcional aos resultados obtidos. Pensava em minha casinha modesta em Austin, com toalha de plástico na mesa de jantar e sofá amarelo em frente à TV, minhas cortinas com estampa de flores do campo e uma imagem de oxum na parede... Meu galinheiro no quintal de casa, minha goiabeira que nunca dá goiabas, o macarrão grudado com galinha a molho pardo que minha mulher sempre faz pra mim aos domingos e que só agora, acho uma delícia... A caminhada de 40 minutos trilhada de madrugada até a estação do trem, a viagem interminável até o trabalho e ver o dia nascendo dentro do vagão sem ao menos, conseguir me mexer... Isso vai fazer uma falta! Sem falar nas noites furtivas com Irene, minha doce namorada, nos motéis fuleiros da Avenida Brasil.

Nunca senti medo e agora estou sendo tragado por ele. Adiantaria tentar desviar o pensamento para outras coisas, se as “outras coisas” também vão acabar? E se não conseguir terminar minha laje? E se a foto não ficar pronta? E se não conseguir pôr a cachaça do santo? Sexta-feira é dia de oxalá.

12 comentários:

Mada disse...

Teus textos são absolutamente encantadores.

Anônimo disse...

Rachel, o que eu acho mais admirável nos teus textos (e razão a mais para adorá-los) é essa tua capacidade infindável de rastrear e cooptar a simplicidade das coisas míúdas da vida, simples/mente, pros teus escritos. Uma vez disseram da Clarice que ela fazia uma espécie de "cruel realismo", observador daquilo que quase sempre nos passa desapercebido em meio às "chaturas" do cotidiano - como o cego mascando chicles do conto "Amor", para citar apenas um exemplo. É claro que é de outra forma, mas eu enxergo o mesmo processo em ti, na tua literatura, consciente de que aquilo que representa é pura ficção, porém calcada na matéria pulsante do real.

Sylvia Regina Marin disse...

Bela Rachel,
Sempre iluminada e visceral!
Belo texto!
Beijos.
Sylvia

Isaac Frederico disse...

oi rachel !

hehehe sempre uma diversão passar por aqui, a pontinha de putaria, com a namoradinha e os moteis fuleiros da brasil, não poderia faltar, mais a atmosfera insólita de sempre, como sempre digo teus textos são muito característicos e deliciosos de ler.

sabe o que notei somente agora? vc raramente faz menção à idade dos personagens dos seus textos... apenas me ocorreu.

bjão !

Victor Meira disse...

Achei bacana o texto. Ele é progressivo. O evento inicial descrito situa a personagem num plano físico; no segundo parágrafo o personagem imerge em lembranças; no terceiro, entra nas dúvidas, medos e desconhecido. Bacana ver isso com claridade.

Achei engraçado a importancia que ele dá pra namorada dele. "Sem falar nas noites furtivas com Irene, minha doce namorada, nos motéis fuleiros da Avenida Brasil" Pronto, sumiu. Hahaha, já deve fazer muito tempo da junção dos dois.

No todo, tem uma ou duas vírguas curiosas.

E é engraçado a coisa da personagem masculina-feminina. Tem algum indício acerca da sexualidade da personagem no conto? Pode ter passado batido em só 2 leituras.

Sobre a impressão, discordo da sylvia. Não acho visceral. Iluminado? Não é bem isso. Acho brando e cotidiano, com toques bastante femininos na nostalgia dos pequenos detalhes das coisas.

Bom texto, rachel.
Bêjo!

Anônimo disse...

e se... nós tivéssemos 2 rodas seríamos 2 bicicletas talvez...

Márcio Palmeira disse...

Espero que não!! RRSS!!!

Um beijão.

Gaja disse...

agradeço a visita (trata-se de um chá de panelas).
Chegou a ler o email que te mandei? Caso não, resumo: gostei muito de seus textos.

Heyk disse...

Eu fiquei curioso, curioso pra saber o que era o despacho, curioso pra saber o que tava acabando e porque, parece que cheguei no meio da conversa. Putz.

Escuta, o meu blog é esse mesmo o endereço, mas agora chama entre águas, se não de rpreguiça põe ái o nome novo.

Bjocas.

Rachel Souza disse...

Gente,
Obrigada pelos comentários, pelas críticas! Fundamentais os dois tipos de crítica que tenho recebido, as literárias que são as embasadas num referencial estético- teórico, com ponderações pertinentes. E as calcadas na efemeridade do gosto, da opinião, do sentimento. Ambas me ajudam a escrever melhor! Um salve à arte literária! Um beijo em vocês!
P.S: Elmo, você é um profissional foda! Tem que se mostrar mais, tem que sair da toca coelho!rs

william disse...

Casinha em Austin com toalha de plástico rs, as descrições e a imaginação foram longe. Bom o "desfecho" no se...
bjo.

Anônimo disse...

Ótimo! Mas também fiquei curiosa: O que vai acabar?! Qual a razão do despacho? Quais motéis fuleiros da Brasil?!
Ai, ai...
Luanda Morena