sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Triunfante entusiasmo bovino

Um maníaco. Parecia um maníaco andando pelo centro da cidade. Desembestado, sem paradeiro certo, olhar vago de olhos esbugalhados, camiseta suja de pão – de- queijo e mãos geladas. Um suor frio me percorria o corpo e arrepiava os pêlos do nariz. Descabelado, me tornei raro entre os demais, um cabra com cabelos falhos nas laterais, lacerações na alma e cicatrizes visíveis no queixo, herança punk. Um punk de alma russa, patético, suando tal um porco no calor da Presidente Vargas, um ser lamentável sem gravata nem conta bancária.

Tenho evitado olhar no espelho por uma questão de bom-senso e vaidade, o choro inconsolável vem toda noite e me enche de olheiras funéreas, um ritual seguido com afinco, soluços e músicas de fossa. Ela, um animal ferino com jeito de tarada... Passávamos horas trepando enlouquecidos, ela me olhando no rosto, sem desviar o olhar e eu, babaca, chorando de emoção por ter aquela mulher de cabelos crespos e ascendente em virgem.

Conversávamos amenidades no dia em que partiu. A casa com as luzes apagadas de contas vencidas e risadas dissonantes. Ela levantou, pôs as calças, uma blusa, calçou seu coturno fedido, lavou o rosto na pia da cozinha, perguntou se tinha comida na geladeira e disse que a brincadeira acabou. Bateu a porta cansada da gincana diária... Fiquei imóvel, incrédulo, com a garganta arranhando e ruminando os três anos de convivência marital. O cheiro da mulher ausente doía, deixava marcas indeléveis maiores que as do apedrejamento sofrido no show da minha própria banda de rock.

Bafo de selva, 40º à sombra, uma da tarde, dois reais no bolso, saliva borbulhando no canto da boca entreaberta, economias franciscanas ameaçadoras de despejo, tesão retesado, angústia lancinante. Eu estava morrendo, a vida me mataria em questão de semanas, meu pressentimento não me deixava enganar, li Maiakovsky, sei das coisas. A cidade oferecia opções vastas, uma banca de jornal vendendo apostilas de concurso público, últimas notícias de um crime bárbaro e celebridades colunáveis, dez ambulantes apregoando quinquilharias num espaço mínimo e vendedores de sonhos empilhando filmes educativos com moças em poses exóticas. Entrei na padaria, comprei 100 gramas de mussarela e atravessei a rua comendo.

6 comentários:

Gaja disse...

gosto de como você usa a comida como marca do desajuste ou da reconciliação. mas fiquei angustiado.

Victor Meira disse...

Reticente no começo e fim, trechos do dia de quem escolhe a angústia e se vale da poesia de uma carapinha cúprica pra dizer que a angústia é quem o escolheu. O desfecho é gostoso que nem muçarela à uma da tarde, comida na calçada-esteira em movimento.

Bonita fresta, Rachel. Dá quase peninha da dureza que é a vida do rapaz. Só não dá porque ele é auspicioso, e sabe de mais coisa que a autora dele próprio. Hahaha.

Delícia de conto-trecho.
Beijo!

Anônimo disse...

Estou sentindo uma evolução nos textos. Parabéns!! Estão consistentes e deivando de ser verdes. Parabéns!!! Além de ser aberta para vida e boa observadora, deve estar lendo bastante!!!!

dade amorim disse...

Oi, Rachel, vejo o estilo ficando maduro, muito bom, e sempre aquele traço de poesia do cotidiano. Gostei. :)

Quer deixar um beijão de aniversário, porque só volto pro rio em fevereiro e a conexão aqui em são pedro tá entra-não-entra.

Beijo beijo!

sabina anzuategui disse...

gostei... "mulher de cabelos crespos e ascendente em virgem"? rs.

Priscylla de Cassia disse...

ler este conto é como entrar num bonde e sentir os farelos de pão sujando a vista, coexistindo as más sensações do infeliz com o paladar de muzzarela...

prazer te ler!