quinta-feira, 25 de março de 2010

Um dia

Abriu a sacola do mercado que havia esquecido há 3 dias sobre o sofá rasgado da sala. A espuma verde do estofado velho, a sacola plástica, o líquido de carne apodrecida se espalhando pelas coisas. Revirou a sacola, tirou uma lata de não sei o quê, cinco quilos de arroz num saco bege, um real de pão e a carne. Levou-a pingando até a cozinha, atravessou o corredor de casa deixando uma trilha fétida e viscosa de morte. A barriga roncava à fome e ressaca. Jogou o saco da carne na pia, rasgou, abriu a torneira e deixou a água escorrer. O vermelho se misturando, se diluindo, o cheiro se esvaindo aos poucos, a barriga ainda roncando, a cabeça latejando a cerveja de ontem, os olhos e a boca ressecados, a água descendo... Pegou a frigideira dentro do armário, jogou meia lata de óleo, testou as quatro bocas do fogão, acendeu a única que funcionava, pegou parte da carne, jogou sal e fritou. Mastigou a seco e foi para seu quarto mudar de roupa. Se arrumou atrasado pro trabalho. Rasgou fotografias. Esqueceu de escovar os dentes. Tudo na mesma manhã em que soube ter nascido de cesariana.

4 comentários:

Felipe Malta disse...

Salve salve!
Saudade sua moça.

Cassia disse...

ahhh, esses textos já estão mais do que lidos, eles são reconhecidos e identificados no meu sistema....
mas gostei muito da idéia das músicas, é sempre ainda mais gostoso!

Elmo Thompson disse...

Não sei se é só por hoje, mas tô meio nostálgico e correndo o risco de autoindulgência. Esse teu texto me lembrou em ecos um que há tempos escrevi, lá naquela oficina tijucana. Sei lá, lendo aqui o teu escrito me veio a mesma sensação de certa impotência, da "rotineirice" que passa e deixa seus rastros de azia na boca, pelo chão, por um modo de agir que parece nunca acertar o alvo (muitas vezes mesmo sem saber qual). Nem sei mais qual foi o texto, também não tem tanta importância, mas o diálogo, aliás, não inédito, me faz crer que fantasmas parecidos pairam sobre as nossas cabeças...

beijo,

do elmo

PS: bacaninha a ideia do som...

Arthus disse...

Tenho que colocar mais coisa lá, sim, Raquel.
Mas agora estou entre o acumulo de papéis no chão do quarto, tomando uma cerveja preta, escutando gonzaguinha e tragando um tabaco forte. Já, já, ao torna-me fumaça vejo o que escrever... é logo. Cadê você?