Abriu a sacola do mercado que havia esquecido há 3 dias sobre o sofá rasgado da sala. A espuma verde do estofado velho, a sacola plástica, o líquido de carne apodrecida se espalhando pelas coisas. Revirou a sacola, tirou uma lata de não sei o quê, cinco quilos de arroz num saco bege, um real de pão e a carne. Levou-a pingando até a cozinha, atravessou o corredor de casa deixando uma trilha fétida e viscosa de morte. A barriga roncava à fome e ressaca. Jogou o saco da carne na pia, rasgou, abriu a torneira e deixou a água escorrer. O vermelho se misturando, se diluindo, o cheiro se esvaindo aos poucos, a barriga ainda roncando, a cabeça latejando a cerveja de ontem, os olhos e a boca ressecados, a água descendo... Pegou a frigideira dentro do armário, jogou meia lata de óleo, testou as quatro bocas do fogão, acendeu a única que funcionava, pegou parte da carne, jogou sal e fritou. Mastigou a seco e foi para seu quarto mudar de roupa. Se arrumou atrasado pro trabalho. Rasgou fotografias. Esqueceu de escovar os dentes. Tudo na mesma manhã em que soube ter nascido de cesariana.
7 comentários:
Ácido e com conto.
Acho ótimo o fim. A mudança de velocidade, de densidade, que acontece no fim. O desenrolar é fotografia e textura. O fim é idéia, suco concentrado e gostoso.
Adorei, Rachel.
(ah, é "raquél" ou "reichel" que cê fala?)
nossa. gostei.
mas prefiro o meio: lavar e fritar carne podre.
ah: se você tiver energia de vir a sp para um lançamento/chopp com 3 ou 4 pessoas, podemos marcar mesmo!
tem até quarto de hóspedes aqui em casa, se precisar.
bjs e boa semana!
que legal a cesariana fechando essa coisa.
engraçado, rola uma auto-vingança, ao mnesmo tempo com um ar de "tudo na mesma manhã em que as pessoas passavam lá fora"
O limite que a cesariana tem aí entre ser terrível como a carne pobre ou normal como não escovar os dentes dá uma cor muita boa pra essa conversa.
Te um clima comum a muitos textos seus, Rachel. Isso é ótimo, é uma marca própria, um jeito de filme trash.
estilo filme trash, assino embaixo e ainda bem.
ainda bem que temos uma menina que não mede nojo, que arrebenta.
tô cansado de comportadinhas das letras, né?!
podescrer, o detalhe final é crucial no texto, coroando-o, visto que o próprio miolo é total sensorial e repleto de imagens.
gosteizão do texto, ainda me sinto como esse cara descrito aí, não tem como não sentir ..
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