segunda-feira, 23 de junho de 2008

Um texto do livro

Latente precipício das deformidades do íntimo



O dia era novo. A loucura era a mesma. À fresta de seu quarto iniciava um dia ensolarado e radiante, daqueles com ar de balneário nas férias de janeiro. Seus olhos remelentos pediam penumbra, fechou as cortinas com um semblante de homem das cavernas. Fez seu desjejum com o vinho mais caro de sua adega particular, sorveu a própria melancolia em goladas vermelho-bordeaux. Ouviu o vendedor de pão-doce berrando iguarias matinais, fez-lhe ameaças em silêncio, entre sussurros e resmungos e movimentou-se vagamente de um lado a outro, numa gagueira gestual. Os filhos se arrumando pra escola, ele pensando no próximo passo...

Desempregado que era bocejou um cansaço e uma expressão de pânico. Abriu a gaveta e tirou seu revólver, sentiu um vazio maior que o comum, o resto do dia a ser preenchido, a arma reluzindo magnética... Mirou, mirou e deu um tiro no pé. Sentou no sofá da sala e deu-se a um assobio de melodia dissonante, ficou parado, olhando a dor, sentindo as pausas. Alguém gritou “bom-dia”, o filho mais velho ofereceu ajuda, ele pediu mais vinho, o pé jorrando viscoso...




Se quiser mais: www.editoramultifoco.com.br

6 comentários:

EDUARDO OLIVEIRA FREIRE disse...

Excelente.

Anônimo disse...

Rssa mudança de humor repentina que nos pega pela manhã... faz a gente cometer loucuras rsrs.

Felipe Malta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Felipe Malta disse...

"O Fantástico Mundo de Rachel"
Adorei!

Anônimo disse...

...ah, não vale, esse eu já conhecia. Bom, de qualquer forma, creio que ainda não havia tecido nenhum "comentário técnico", como você me pediu em troca do teu perdão né...rs Então lá vai: essa é uma narrativa muito bem realizada tecnicamente, aliás, das que eu conheço dentre a tua produção, talvez uma das melhores, e muito por conta de um uso um pouco diferenciado da cadência, da levada com que geralmente te é habitual. Noto um padrão de frases justapostas ou coordenadas que dão a dimensão da angústia de um personagem que, imerso no seu universo particular (calcado num visível problema com o álcool - via de escape, quem sabe?), não consegue transpor as barreiras que ele mesmo se impõe face a um outro lado do mundo (um tanto quanto idealizado, é verdade), mas que representa um contraponto claro à sua condição e que, de certa forma, o angustia, deprime e "minimiza" ainda mais, fazendo com que seu ódio exploda sobre si mesmo, perdendo as bases residuais de uma possibilidade de racionalização de seu estado, interessantemente plasmado para a forma literária sob a imagem do quase literal "tiro no pé".

***e aí, tô perdoado??? rs

BJUUU =D

william disse...

Boa surpresa, o texto desce bem como um bom bordeaux.