terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Prejudicada pelo calor intenso

Não tinha idéia do quanto queria algo maior que suas próprias dúvidas e demências diárias. Não calculava. Não sabia mensurar, simplesmente. Ouvia sempre, às 5:30, o vendedor de jornais gritar notícias de ladroagem grossa,política suja. Não entendia muito bem o porquê das coisas, mas não pegava bem andar por aí sem opinião formada sobre tudo. Mil vezes o conhecimento raso e rasteiro do que conhecimento algum. Sua vó estava certa... Mulher tem que rir e se mostrar razoavelmente bem-informada. Comprou o jornal. Lambeu feridas sociais descascadas embaladas pra presente,embrulho do peixe de amanhã. Cartas, Chave do trabalho esquecida em cima da mesa. Mulher flutuando em passos zombeteiros. Barulhinho de pássaros e Kenny G no elevador. Tristeza cósmica de dentes cariados sobre gengivas inflamadas. Por conta das filhas e do marido resolveu não mais um monte de coisas.Não mais fumar,não mais beber,não mais chegar tão tarde,não mais ganhar tão pouco,não mais trepar com qualquer um,n]ao mais reclamar da celulite. Não será feita nenhuma exceção,”não mais” um monte de coisas! Ela veste preto e cabelos tingidos de acaju. Ela tem fome e precisa se livrar daquela tendência pra morte. O fato é prontamente espalhado aos parentes e agregados: ”Alimentem-na,façam cócegas na infeliz”. Ela fugia das reuniões familiares e pintava as unhas com o descrédito das tardes de domingo. Abandonou o amante fixo e recomeçou projetos de segunda-feira. Saiu destinada a secar os vasinhos da perna, pequenas varizes azuladas de calibre médio.

4 comentários:

Anônimo disse...

Bacan. Está inpirada!!!!

sabina anzuategui disse...

Gostei dessa frase: "Ela tem fome e precisa se livrar daquela tendência pra morte."

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Embora, infelizmente, todos nós tenhamos essa tendência.

Anônimo disse...

"eu prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo", foi a primeiríssima coisa que me veio à mente após a leitura desse teu texto, Rachel. Não pela simples menção implícita, senão pela ideia de que os tempos mudaram - e muito. Será que justamente não vivemos nós em uma época de comodismos cibernéticos & afins? Cadê aquele ímpeto de até algumas décadas, ou, sendo menos "utópico", cadê a vontade do sonho, esmagado por um cotidiano que não mais cabe em 24 horas...? Enfim, mesmo esse não sendo, na minha opinião, um dos teus melhores textos - no meu parco julgamento possui menos "carga" que "Novo ano novo", para te citar um exemplo -, é impressionante como você imprime a tua marca em tudo que escreve, como teu estilo é evidente. Aparentemente simples, e é na simplicidade que residem as máquinas mais complexas, e tão bom de ler, além de sempre ter um nó de estômago que instiga a gente...
PS: e vejo que você não adotou a "reforma" ortográfica. Tsc, ah, uma bobagem isso né (mas acabo que estou sendo paulatinamente "infectado"... que deus me perdoe...rs)...

BJU!!!

Sylvia Regina Marin disse...

Olá, RachelVocê consegue imprimir sua marca estilosa sempre, prejudicada pelo calor intenso ou não.Beijos de sua fã de sempre.Sylvia