“Insolente malcheiroso” era disso que me chamavam àquela tarde de céu estranhamente cinza. Era Fevereiro, época de sol a pino. Era fevereiro e fazia um dia cinza...
Tratei de me refazer de meu pós-coito exagerado enquanto abotoava as calças e ouvia os insultos a mim, distraidamente, tecidos. Desconsideravam-me por completo, entendi ser um serviçal desprezível, um abjeto subalterno com ginasial completo e portador de um belo e disputado baixo-ventre. Eu era um merda!
Triste, saí do quartinho onde faço morada, com o máximo de silêncio possível, sem barulho de passos ou qualquer indício de minha existência. Fui até a cozinha, pus um cigarro entre os lábios e procurei algo que pudesse acendê-lo. Nada! A casa não tinha fósforos, a casa era automática. Não sabia acender o fogão modernoso. Precisava de umas três tragadas e só. Necessitava disso, ainda mais depois da canseira da tarde, da incansável fêmea de útero chamuscante... Vaca! Tenho certeza que uns tragos dissolveriam as mágoas, certeza! Guardei o cigarro no bolso, sentei na cadeira de madeira gasta, comi cinco fatias de bolo solado e empurrei com água. Impressionante como certas palavras vindas de quem não imaginamos dizê-las, ferem. Fui chamado de tudo nessa vida, freqüento o submundo das bestas, minha própria mãe nunca me chamou pelo nome, só por “verme”, mas nessa casa onde achava ser bem-recebido, nunca! Nunca imaginei tal desconsideração! Peguei mais uma fatia de bolo e mastiguei enquanto pensava em tudo...
São 3 da tarde. Hora de capinar o jardim e acariciar o cachorro, senão ele “estressa”. Depois das carícias, um jato de água termal nos pêlos. Frescurada! Depois é hora da limpeza na fossa e mais tarde hora de carcar o patrão. Ele é o menos ingrato daqui, me ofereceu casa, disse que queria fugir comigo pra outra cidade, viver um casamento de verdade, diferente do engodo que alimenta há 15 anos com a mulher, a “fêmea do útero chamuscante”. Eu que sei... Ela vem e reclama dele comigo, aí ele vem e reclama dela. Vivo no fogo cruzado, cheiro à azedo e é disso que eles gostam. Tenho um cheiro de “coisa” que atrai, dá tesão, todas as minhas ex-patroas diziam. Nunca fui demitido, eu que sempre pedi as contas. Gostei daqui, achei nessa casa meu verdadeiro lar, com almofadas, sexo e afeto. Fui iludido, profundamente iludido! Senti fome, peguei o resto do bolo, esquentei um pão duro, amolei a faca de cortar carne e com um tablete de manteiga, segui pro quarto, ao encontro dele.
6 comentários:
Muito bom conto!!!
Parabéns pelo conto.
Prendeu minha atenção do início ao fim.
Bjo. Até mais!
Que bacana, Rachel... A personagem vai se expandindo ao longo da narrativa. A vítima se transforma em um meio-termo (já que nenhum dos três é exatamente uma "presa"). No fim, fecha-se o ciclo num ar hedonista. Um ar de máquina que funciona.
Sempre bom.
De cara me veio á cabeça o Pasolini algo do teorema talvez, mas é claro num outro viés.
"acariciar o cachorro, senão ele “estressa”, .Um texto cheio de passagens sutis rs. É Rachel anda fazendo a coisa direitinho, texto bem construido, bem amarrado...
Beijão.
Raquel,
Obrigada pela visita, Xará!rs
Importante ganhar mais um leitor num país que não lê. Viva!!
Victor, vc ter identificado a configuração toda da história como hedonista, foi tiro certo. Na verdade me aponte algo que não tenha a raiz hedonista!rs Nessa história realmente não há "vítimas" e o que poderia ser um mocinho é igual ou pior que seus algozes...
William, nunca vi esse filme do Pasolini, se quiser rever comigo, fique à vontade!rs
Beijo!!
Gostei!
Me faz lembrar outra música do Mombojó:
eu já cai
já estou no chão
e estou torcendo pra você ficar na merda
como eu também estou nessa merda
então porque não ficar aqui
se você estiver na água
e não souber nadar
eu vou te jogar uma pedra
pra você segurar
pra você ficar ciente de onde é seu lugar
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