segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Lar

“Insolente malcheiroso” era disso que me chamavam àquela tarde de céu estranhamente cinza. Era Fevereiro, época de sol a pino. Era fevereiro e fazia um dia cinza...

Tratei de me refazer de meu pós-coito exagerado enquanto abotoava as calças e ouvia os insultos a mim, distraidamente, tecidos. Desconsideravam-me por completo, entendi ser um serviçal desprezível, um abjeto subalterno com ginasial completo e portador de um belo e disputado baixo-ventre. Eu era um merda!

Triste, saí do quartinho onde faço morada, com o máximo de silêncio possível, sem barulho de passos ou qualquer indício de minha existência. Fui até a cozinha, pus um cigarro entre os lábios e procurei algo que pudesse acendê-lo. Nada! A casa não tinha fósforos, a casa era automática. Não sabia acender o fogão modernoso. Precisava de umas três tragadas e só. Necessitava disso, ainda mais depois da canseira da tarde, da incansável fêmea de útero chamuscante... Vaca! Tenho certeza que uns tragos dissolveriam as mágoas, certeza! Guardei o cigarro no bolso, sentei na cadeira de madeira gasta, comi cinco fatias de bolo solado e empurrei com água. Impressionante como certas palavras vindas de quem não imaginamos dizê-las, ferem. Fui chamado de tudo nessa vida, freqüento o submundo das bestas, minha própria mãe nunca me chamou pelo nome, só por “verme”, mas nessa casa onde achava ser bem-recebido, nunca! Nunca imaginei tal desconsideração! Peguei mais uma fatia de bolo e mastiguei enquanto pensava em tudo...

São 3 da tarde. Hora de capinar o jardim e acariciar o cachorro, senão ele “estressa”. Depois das carícias, um jato de água termal nos pêlos. Frescurada! Depois é hora da limpeza na fossa e mais tarde hora de carcar o patrão. Ele é o menos ingrato daqui, me ofereceu casa, disse que queria fugir comigo pra outra cidade, viver um casamento de verdade, diferente do engodo que alimenta há 15 anos com a mulher, a “fêmea do útero chamuscante”. Eu que sei... Ela vem e reclama dele comigo, aí ele vem e reclama dela. Vivo no fogo cruzado, cheiro à azedo e é disso que eles gostam. Tenho um cheiro de “coisa” que atrai, dá tesão, todas as minhas ex-patroas diziam. Nunca fui demitido, eu que sempre pedi as contas. Gostei daqui, achei nessa casa meu verdadeiro lar, com almofadas, sexo e afeto. Fui iludido, profundamente iludido! Senti fome, peguei o resto do bolo, esquentei um pão duro, amolei a faca de cortar carne e com um tablete de manteiga, segui pro quarto, ao encontro dele.

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom conto!!!

Unknown disse...

Parabéns pelo conto.
Prendeu minha atenção do início ao fim.
Bjo. Até mais!

Victor Meira disse...

Que bacana, Rachel... A personagem vai se expandindo ao longo da narrativa. A vítima se transforma em um meio-termo (já que nenhum dos três é exatamente uma "presa"). No fim, fecha-se o ciclo num ar hedonista. Um ar de máquina que funciona.

Sempre bom.

william disse...

De cara me veio á cabeça o Pasolini algo do teorema talvez, mas é claro num outro viés.
"acariciar o cachorro, senão ele “estressa”, .Um texto cheio de passagens sutis rs. É Rachel anda fazendo a coisa direitinho, texto bem construido, bem amarrado...
Beijão.

Rachel Souza disse...

Raquel,
Obrigada pela visita, Xará!rs
Importante ganhar mais um leitor num país que não lê. Viva!!
Victor, vc ter identificado a configuração toda da história como hedonista, foi tiro certo. Na verdade me aponte algo que não tenha a raiz hedonista!rs Nessa história realmente não há "vítimas" e o que poderia ser um mocinho é igual ou pior que seus algozes...
William, nunca vi esse filme do Pasolini, se quiser rever comigo, fique à vontade!rs
Beijo!!

Vinicius Longo disse...

Gostei!

Me faz lembrar outra música do Mombojó:

eu já cai
já estou no chão
e estou torcendo pra você ficar na merda
como eu também estou nessa merda
então porque não ficar aqui
se você estiver na água
e não souber nadar
eu vou te jogar uma pedra
pra você segurar
pra você ficar ciente de onde é seu lugar