quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Tarde

Pulei o muro para vê-la. Há anos cultivava em minha imaginação tardiamente adolescente, esse momento, o momento em que a encontraria. Eu chegaria de banho tomado, perfumado, unhas e cabelos cortados, barba aparada, bem vestido e com algo para presentear, algo simples,singelo e significativo. Um bolo de fubá feito por mim mesmo, ainda na fôrma, coberto com um pano de prato bonito. Entraria em sua casa de janelas brancas descascadas e entregaria o bolo com um sorriso de contentamento, ela certamente passaria um café na hora, quente e forte. Nossa tarde seria um agradável encontro de café e bolo, muitos sorrisos, abraços, algumas lágrimas e, eventualmente, algumas culpas arremessadas nas costas, que logo seriam esquecidas por ambos. “Você é bem-vindo, volte sempre que quiser!”. Ela diria. Eu agradeceria com a alma plena e um sentimento de absolvição pelas pequenas e grandes misérias que devo ter causado e, revigorado, diria: “Na próxima, trago sorvete! Gosta de chocolate?”. Sairia contente, disposto para enfrentar a vida e seus prazos de validade, a vida e seus símbolos fálicos, onde a conta vence, o feijão apodrece, a camisa descostura e o homem tem que levar dinheiro pra casa.
Seria feliz com isso, profundamente feliz! Iria visitá-la sempre, seria seu melhor amigo, aquele de todas as horas. Não teríamos vergonha de repartir nossa pobreza, ela me mostraria a pia de mármore da cozinha gasta e rachada e diria estar lavando a louça na do banheiro, também em estado terminal. Tiraria então, a carteira do bolso, abriria, pegaria o talão de cheques, a caneta, faria cara de salvador da pátria e perguntaria: “De quanto é o estrago?!”. E ela diria com a testa franzida e a sobrancelha erguida: “Não sei pai. Duzentinhos deve resolver.”
Pai. Ela me chamaria de pai, da mesma forma que todos os filhos se referem aos seus. Sairia naturalmente de sua boca, já faria parte do vocabulário diário, sem alarde, sem ocasiões especiais, sem sinos tocando. “Pai”. Ela diria. Creio que agora, na idade em que se encontra, aos trinta e poucos, não deva mais nutrir por mim uma imagem carinhosa, um sentimento filial, sé é que algum dia nutriu. Ela deve ter trabalhado minha figura como a de um mito, um ser alado, daqueles que “dizem” que existe, mas ninguém vê. Pra minha filha não passo de uma entidade ou no máximo, um fato biológico. O que a mãe deve ter dito a ela? Provavelmente uma mentira bem contada, o que agora não faz diferença. Não sei se resolveria a questão eu tentar uma proximidade, dizer que a quero muito bem ,que sua mãe desapareceu sem explicação mas ainda assim assumo a irresponsabilidade de não tê-las procurado. Acho que ela me mandaria à merda e a mãe, se continua louca como era, me daria uma facada, não sem antes me xingar. O fato é que faltou coragem ou sobrou bom-senso, um dos dois! Descobri seu endereço e fui lá, fiquei olhando de longe ela varrendo o quintal, jogando o lixo fora, arrumando as coisas, observando seu jeito... O astral era de festa, uma recepção de amigos íntimos talvez. Ela estava feliz e é mais alta do que havia imaginado. Pulei o muro do vizinho e me escondi agachado, atrás de seu jardim malcuidado, onde a visão era melhor. Fiquei a noite inteira assim.

12 comentários:

Tahian disse...

Estranho, fico pensando como você escreve tuas coisas, como é seu processo de criação, dessas imagens tão pessoais, não de alguma coisa sua, mas tão de pessoas ....
hahaha

Victor Meira disse...

Que coisa linda, Rachel. Muita sensibilidade nessa personagem. Tudo bem construidinho; super bem colocada a quebra do suspense e a revelação da identidade das personagens, ali em meados do texto.

Acho legal essa personagem feminina que sempre aparece em plano de fundo na tua narrativa, mas sempre como razão (problemática) da existência e das ações da personagem protagonista (quase sempre masculina). É como você ali, mesclada a esse íncubus-persona em sempre primeira pessoa, por meio da narrativa.

Tem sido ótimo te ler.
Um beijo.

Sylvia Regina Marin disse...

Querida Rachel,
Fiquei um tempo sem te visitar, mas que alegria poder ler teus textos.
É tudo MARAVILHOSO.
Beijos.
Sylvia

Victor Meira disse...

Vá pro Quadrado. Estive Balzaquiando.

Vinnyl 69 Produções disse...

Gostei das coisas que li.
Escrevendo você é bem densa, complexa e um pouco confusa.
O mundo todo não espera nada de você, além do seu amor. Viva em busca dos sonhos e não importa o que aconteça, lembre-se que existem outras pessoas iguais a voce, espalhadas por essa vida.
Seja bem vinda a Guerrilha Aberta
www.guerrilhaaberta.blogspot.com

Vinnyl 69 Produções disse...

Falando nisso, quando nos re-encontramos, eu quero um livro seu. Quanto é?

Rachel Souza disse...

Vinícius(Vinnyl...rs),
O mundo só quer de mim meu amor? Graças,graças!! Aqui tem amor pra mais de metro! Só acho que vc deve frequentar menos o budismo(risos), que linha c tá seguindo? Vou escrever pro guerrilha, podexá!! E quanto ao livro, compre logo antes que acabe.rs
Beijo!!

Rachel Souza disse...

Pois é victor, acho mais interessante não entregar o ouro logo no início do texto, a coisa tem que fluir, tem que envolver. Gosto de ler coisas que adicionem elementos interessantes à minha construção(de leitora...) da personagem, curto ir montando a criatura aos poucos.
Bem sacado, a personagem feminina sempre aparece de alguma forma, ainda que fora da narrativa. A mulher está sempre nas entrelinhas,como razão, como paixão.

EDUARDO OLIVEIRA FREIRE disse...

Exxelente conto

Fernanda Scarpa disse...

Lindo!vou vir sempre degustar um café...rsrs
obrigada!

Heyk disse...

esse tem o vigor que eu já conhecia mesmo. Escuta tá no livro não, tá?

Heyk disse...

mas tem um pedaço a mais de quando eu conheci, não?