terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Primeiro dia

Passos rumo ao inusitado das situações razoavelmente calculadas, onde sabe-se a essência do que se espera ainda que desconhecida a forma, a fórmula, o jeito. Pensamentos entre cortantes e concentração para atravessar a rua. Rua! “segmento destacado nadando numa aura indistinta e completa em si própria. Uma porção vibrante do todo infinito. Repleta de memórias, qual um túmulo antigo que pulula de invisíveis fantasmas.” Eles estão todos ali, alguns arriscam um papo que não me desperta interesse. Já tenho os meus e por ora me são suficientes, prefiro os impagáveis versos de Henry Miller e continuo: “Não posso afirmar se caminho pela rua, ou se deslizo. a rua me envolve. Sou devorada por ela." Nove da manhã de um dia cinza, é sábado. Estou adiantada em 1 hora, logo eu, a besta- fera dos atrasos pontuais!
Tenho fome e não é de pão, tampouco brioches. Ainda assim entro na padaria, entre infindáveis opções da mais baixa gastronomia escolho uma média de café com leite e sorvo com letras de um romance sórdido e ácido de João Gilberto Noll. Com um misto de inveja e admiração profunda, fecho o livro na tentativa de me desvencilhar de sentimentos tão intensos, afinal encontraria Domingos de Oliveira em sua totalidade em questão de 40 minutos. Não seria justo não estar inteira, não seria digno estar absorta na sintaxe do romance que ainda não escrevi, do Jabuti que certamente ganharia com ele e...
Louca, tropeço num passante enquanto me dirijo ao teatro das artes. Peço desculpas e para disfarçar compro jornal e troco trivialidades dispensáveis com a vítima. 9:30 da manhã. Sigo o breve percurso restante, chego à porta do teatro. Meia dúzia de pessoas numa bancada de mármore até que nos deixem entrar. Escolhemos nossos lugares, reconhecemos rostos e aguardamos até que ele chegue. Eis que chega! Chega, coloca suas coisas sobre e uma espécie de baú em cima do palco, cumprimenta individualmente as presentes com três beijos no rosto e os presentes com um aperto de mão seco e sucinto. Óbvio, trata-se do homem de todas as mulheres do mundo! Natural e de um certo ponto previsível.
Feitos os rituais e devidas apresentações a aula começa. Entre questões filosóficas bem pautadas, algumas perguntas centrais como “O que é o teatro?”, “O que é a palavra? O que é isso e aquilo? Ele cita Sartre e Camus entre pausas de sorriso fluido de fumaça e olhos solidamente verdes. Seus gestos denunciantes de excesso de vida e a dialética existencialista. Penso a palavra sob essa ótica e anoto “ser uma força que nos atrela à condição humana inescapável. Aquilo que nos condiciona à limitação dos conceitos e nos liberta cruelmente, afinal “o homem está condenado a ser livre” Mais adiante resignifico o teatro como uma grande mágica que celebra a unicidade do momento, como uma espécie de simulacro do real, como uma coisa tão forjada como a própria vida, como a base de todo pensamento filosófico, a dúvida. É tudo mentira mas é de verdade. Domingos dá uma pausa de 15 minutos e retoma a aula com exercícios de ator. Traga mais um cigarro, observa, tece comentários e lê um trecho de sua dramaturgia. Ele na condição de Deus de seu próprio apocalipse, detém o poder das escolhas. Tenho medo.


*Estranho escrever na primeira pessoa, prefiro as máscaras dos personagens.rs

4 comentários:

Victor Meira disse...

Rachel, curioso o formato meio diário, primeira pessoa, autor como eu-lírico e tudo o mais. Como você, gosto mais também das personagens, metáfora, figura e o escambau. Mas é legal trocar de roupa às vezes, arriscar formas novas.

Legal o seu épico. Parece ter sido escrita durante a coisa em si.

Beijo!

Rachel Souza disse...

Na verdade o propósito foi esse mesmo, escrever um diário dos encontros. Mas ele dise que tava muito subjetivo, que estava ótimo mas "errado".rs

Mari disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mari disse...

sabia que tinha lido esse escrito em algum lugar.