sábado, 6 de setembro de 2008

O morto da segunda-feira

O malandro caminhava na praça imune aos cochichos e olhadelas das moçoilas desejosas de sua atenção e dos moços vingativos e traídos. Um molejo, um requebro no andar, uma ginga. Nas artes do amor e da vida fácil era menestrel, assim como no samba de Noel. Descia o salgueiro e passeava imperial pela praça Saenz Peña, deslizava pelas ruas da Tijuca sob o sol a dourar-lhe a carcaça curtida pelo álcool e pela vagabundagem. Andava, andava, andava... Cumprimentava um e outro com sorrisos e apertos de mão, visitava seus três filhos e prometia levar leite na próxima vez, alegava incompreensão do mercado de trabalho, a exigir-lhe referências demais. Preocupado com o que fazer pra arrumar algum, escolheu o estabelecimento alvo da vez e pôs-se de plantão até conseguir a oportunidade de afanar o patrimônio alheio, um mercadinho na José Higino. Saiu contente, após duas horas de conversê, com dinheiro e mantimentos. Ao virar a rua, encontrou Jurema e seu sorriso elétrico, aceso na esperança de uma tarde de paixão e loucura. Entusiasmado, o malandro assentiu, sob a condição de uma feijoada completa, com couve mineira e farofa de bacon, Jurema com franqueza peculiar, disse sim lhe descendo a braguilha da calça surrada e acenando sua casa na Conde de bonfim. Refestelaram-se de luxúria e gula, dois pecadores mantidos pelo “patrocinador” de Jurema, o “senhor que ajuda”, como gostava de chamá-lo. Completamente saciado, saiu, o abusado, rumo ao samba, onde encontraria outra gentil senhora. Planejou a noite enquanto ajeitava os trajes, saiu da casa saltitante sem perceber que alguém o seguia, um alguém abandonado pelo malandro, rejeitado em suas melhores demonstrações de afeto, um alguém de alma dilacerada... Rosinha, um travesti magrinho, desnutrido e desvalido permaneceu em seu encalço. O malandro nada percebeu, até chegar à rua Aguiar... Rosinha,chorando o desprezo,tirou seu canivete da bolsa e o surpreendeu com uma estocada no peito. Ele ficou ali, com a blusa branca de linho ensopada de sangue, um corpo de quinta, num dia de segunda.


*Esse fez parte de uma antologia para comemorar os 30 anos de fundação do Sesc-tijuca. Uma parceria entre o Sesc e o Sobrado cultural. Gostei da brincadeira.rs


5 comentários:

Eu disse...

adorei o blog... passe tb no meu e se possivel registe-se no meu forum preciso de gente diferente e com cultura.
http://noitearrepiante.forumeiros.com/

Victor Meira disse...

O malandro é detestável. A narrativa tá bem fluída e gostosa de ler, mas o tema não me cala muito fundo. Penso que a personagem teria um brilho lá há umas décadas atrás. Agora tá meio mofado, fora de contexto, figura velha.

Agora, gostei do fim com morte inglória, ainda que assassinado às cegas. O ato não tem força pra martirizá-lo, por isso me contento.

Fujo do uso ao ler apenas uma vez esse post desse blog tão aconchegante.

Um beijo, Rachel!

Rachel Souza disse...

Victor,
O propósito era esse mesmo, uma coisa com ar "idoso".rs
é um malandro da época da construção das grandes ruas, da "construção" (!) do Salgueiro... e meu conto recriou a história do Largo da segunda-feira.
Beijo!

Victor Meira disse...

Oh!
Então vamos bem.

Vinicius Longo disse...

Muito bom!
Me lembra Madame Satã, devia ser mais ou menos assim também...

O amor sempre deixa feridos, querendo ou não. O mundo não sabe tolerar o amor livre de culpas, apegos ou frustações.

Viver a vida como manda a vida!
É o hino da velha guarda!